O Pranto De Maria Parda”
Gil Vicente
CONTEXTO HISTÓRICO
Vem a obra intratextualmente
datada de 1522: na triste era de
vinte e dous desd’o nascimento . Na cronologia vicentina terá sido
composição de uma época em que o autor já não fazia os autos de el-rei D.
Manuel (falecido em Dezembro de 1521) e ainda não fazia os de D. João III.
Luciana Stegagno Picchio fala dum Gil Vicente desempregado do paço, devido ao
luto, e atuando nas ruas de Lisboa, mais perto do povo.
O Pranto de Maria Parda é uma das mais célebres
peças de Gil Vicente. Intencionalmente, o grande dramaturgo, retratou a
realidade das classes pobres de Lisboa,
no Século XVI. Contrariando os discursos que enalteciam e louvavam a beleza
e opulência da capital de um imenso império, Gil Vicente procura desvelar a
vivência dos negros e mestiços chegados e nascidos na metrópole que, em
Quinhentos, calcula-se que perfaziam 10% da população de Lisboa. Muitos eram
alcoólatras, deprimidos pela sub-vida serviçal e sem perspectivas de futuro a
que estavam votados. Vêm-se carnalizados na figura literária de Maria, corrosiva e observadora da sociedade, amante
do vinho . Podemos imaginar apenas o impacto que o monólogo terá tido na corte
e junto do monarca; quando se viu defronte de atrevida mestiça, da base da
pirâmide social, para mais mulher, mais a mais sexualmente livre, assumir,
entre canadas de vinho, uma das mais lúcidas e desesperançadas críticas à
sociedade lisboeta .
Gil Vicente coloca sua Maria Parda na região
da Praça da Sé... “Seca, desgrenhada, escura...”
Uma Maria Parda que acreditamos ser um
símbolo, uma representação metafórica da realidade de Lisboa àquela
época... Época de fome e miséria, acarretadas pela seca que assolou o país no
ano anterior, devastando as vindimas
(As vindimas representam uma época do ano singular em
Portugal que abrange todas as atividades que decorrem entre a apanha da uva e a
produção do vinho. Depois da poda em Janeiro, dá-se a formação dos cachos na
Primavera e é durante o Verão que as uvas ganham cor, aroma e paladar. Entre
Setembro e o Outubro, quando as uvas já se apresentam maduras, ou seja, quando
o seu peso, cor e acidez apresentam as condições ideais para a produção do
vinho, decorrem as vindimas)
e vitimando a população de fome ou
deixando-a passar grande necessidade.
Neste
sentido, evocando o que afirma Paul Téyssier, a falta de vinho relaciona-se
metaforicamente com a falta víveres em geral, comum à época e agravada pela
seca.
“O Pranto de Maria Parda”
(Texto
Completo)
Eu so
quero prantear
Este
mal que a muitos toca;
Que
estou já como minhoca
Que
puzerão a seccar.
Triste
desaventurada
Que
tão alta está a canada
Pera mi como as estrellas;
Oh
coitadas das guelas!
Oh
guelas da coitadas)
Triste
desdentada escura,
Quem
me trouxe a taes mazelas!
Oh
gengivas e arnellas,
Deitae
babas de seccura;
Carpi-vos,
beiços coitados,
Que já
lá vão meus toucados,
E a
cinta e a fraldilha ;
Hontem
bebi a mantilha,
Que me
custou dous cruzados.
Oh Rua
de San Gião,
Assi
‘stás da sorte mesma
Como
altares de quaresma
E as
malvas no verão.
Quem
levou teus trinta ramos
E o
meu mana bebamos,
Isto a
cada bocadinho?
Ó
vinho mano, meu vinho,
Que ma
ora te gastamos.
O’
travéssa zanguizarra
De
Mata-porcos escura,
Como
estás de ma ventura,
Sem
ramos de barra a barra.
Porque
tens já tantos dias
As tuas
pipas vazias,
Os
toneis postos em pé?
Ou te
tornaste Guiné
Ou o
barco das enguias.
Triste
quem não cega em ver
Nas
carnicerias velhas
Muitas
sardinhas nas grelhas ;
Mas o
demo já de beber.
E
agora que estão erguidas
As
coitadas doloridas
Das
pipas limpas da borra;
Achegou-lhe
a paz com porra
De
crecerem as medidas.
O’ Rua
da Ferraria,
Onde
as portas erão mayas,
Como
estás cheia de guaias,
Com
tanta louça vazia!
Já m’a
mim accoteo
Na
manhan-que Deos naceo,
A’
hora do nacimento,
Beber
alli hum de cento,
Que
nunca mais pareceo.
Rua de
Cata-que-farás,
Que
farei e que farás!
Quando
vos vi taes, chorei,
E
tornei-me por detras.
Que
foi do vosso bom vinho,
E
tanto ramo de pinho,
Laranja,
papel e cana,
Onde
bebemos Joanna
E eu
cento e hum cinguinho.
O’
tavernas da Ribeira,
Não
vos verá a vós ninguem
Mosquitos,
o verão que vem,
Porque
sereis areeira.
Triste
que sera de mi!
Que ma
ora vos eu vi!
Que ma
ora me vós Vistes!
Que ma
ora me paristes,
Mãe da
filha do ruim!
Quem
vio nunca toda Alfama
Com
quatro ramos cagados,
Os
tornos todos quebrados!
O’
bicos de minha mama!
Bem
alli ó Sancto Esprito
Ia eu
sempre dar no fito
N'hum
vinho claro rosete.
Oh meu
bem doce palhete,
Quem
pudera dar hum grito!
O'
triste Rua dos Fornos,
Que
foi da vossa verdura!
Agora
rua d'amargura
Vos
fez a paixão dos tornos.
Quando
eu, rua, per vós vou,
Todolos
traques que dou
São
suspiros de saudade;
Pera
vós ventosidade
Naci
toda como estou.
Fui-me
ó Poço do chão,
Fui-me
á praça dos canos;
Carpi-vos,
manas e manos,
Que a
dezaseis o dão.
O'
velhas amarguradas,
Que
antre três sete canadas
Sohiamos
de beber,
Agora,
tristes! remoer
Sete
raivas apertadas.
Ó rua
da Mouraria,
Quem
vos fez matar a sêde
Pela
lei de Mafamede
Com a
triste d'agua fria?
O'
bebedores irmãos,
Que
nos presta ser christãos,
Pois
nos Deus tirou o vinho?
O'
anno triste cainho,
Porque
nos fazes pagãos?
Os
braços trago cansados
De
carpir estas queixadas,
As
orelhas engelhadas
De me
ouvir tantos brados.
Quero-m'ir
ás taverneiras,
Taverneiros,
medideiras
Que me
dem hua canada,
Sôbre
meu rosto fiada,
A
pagar lá polas eiras.
Pede fiado á Biscaïnha.
0’
Senhora , Biscaïnha,
Fiae-me
canada e meia,
Ou me
dae hua candeia,
Que se
vai esta alma minha.
Acudi-me dolorida,
Que
trago a madre cahida,
E
çarra-se-me o gorgomilo:
Emquanto
posso engoli-lo,
Soocorei-me
minha vida.
Biscaïnha.
Não
dou eu vinho fiado,
Ide
vós embora, amiga.
Quereis
ora que vos diga?
Não
tendes isso aviado.
Dizem
lá que não he tempo
De
pousar o cu ao vento.
Sangrade-vos,
Maria Parda;
Agora
tem vez a Guarda
E a
raia no avento.
A João Cavalleiro,
Castilhano.
Devoto
João Cavalleiro,
Que
pareceis Isaïas,
Dae-me
de beber tres dias,
E
far-vos-hei meu herdeiro.
Não
tenho filhas nem filhos,
Senão
canadas e quartilhos;
Tenho
enxoval de guarda,
Se
herdardes Maria Parda,
Sereis
fóra d'empecilhos.
João Cavalleiro.
Amiga,
dicen por villa
Un ejemplo de Pelayo,
Que una cosa piensa el bayo
Y otra quien lo ensilla.
Pagad, si quereis beber;
Porque debeis de saber
Que quien su yegua mal pea,
Aunque nunca mas la vea,
Él se la quiso perder.
Vai-se a Branca Leda.
Branca
mana, que fazedes?
Meu
amor, Deos vos ajude ;
Que
estou no ataude,
Se me
vós não accorredes.
Fiade-me
ora tres meias,
Que
ando por casas alheias
Com
esta sêde tão viva,
Que ja
não acho cativa
Gota
de sangue nas veias.
Branca Leda
0lhade,
mulher de bem,
Dizem
qu'em tempo de figos
Não ha
hi nenhuns amigos,
Nem os
busque então ninguém,
E diz
o exemplo dioso,
Que
bem passa de guloso
O que
come o que não tem.
Muita
agua ha em Boratem
E no
poço do tinhoso.
Vai-se a João do Lumiar.
Senhor
João do Lumiar,
Lume
da minha cegueira,
Esta
era a verde pereira
Em que
vos eu via estar.
Fiae-me
hum gentar de vinho,
E
pagar-vos-hei em linho,
Que ja
minha lan não presta:
Tenho
mandada hua besta
Por
elle a antre Douro e Minho.
João do Lumiar.
Exemplo
de mulher honrada,
Que
nos ninhos d'ora a hum anno
Não ha
passaros oganno.
I-vos,
que sois aviada.
Emquanto
isto assi dura,
Matae coan agua a seccura,
Ou ide
a outremm enganar,
Que eu
não me hei-de fiar
De
mula com matadura.
Indo para casa de Martim Alho, vai dizendo:
Amara
aqui hei d'estalar
Nesta
manta emburilhada:
Oh
Maria Parda coitada,
Que
não tens ja que mijar!
Eu não
sei que mal foi este,
Peor
sem vezes que a peste,
Que
quando era o trão e o tramo,
Andava
eu de ramo em ramo
Não
quero deste, mas deste.
Diz a Martim Alho.
Martim
Alho, amigo meu,
Martim
Alho meu amigo,
Tão
secco trago o embigo
Como
nariz de Judeu.
De
sêde não sei que faça;
Ou
fiado ou de graça,
Mano,
soccorrede-me ora,
Que
trago ja os olhos fóra
Como
rala da negaça.
Martim Alho.
Diz
hum verso acostumado:
Quem
quer fogo busque a lenha;
E mais
seu dono d'acenha
Appella de dar fiado.
Vós
quereis, dona, folgar,
E
mandais-ane a mim fiar?
Pois
diz outro exemplo antigo,
Quem
quizer comer comigo
Traga
em que se assentar.
Vai-se á Falula.
Amor
meu, mana Falula,
Minha
gloria e meu deleite,
Emprestae-mne
do azeite,
Que se
me sécca a matula.
Até
que haja dinheiro,
Fiae,
que pouco requeiro,
Duas
canadas bem puras,
Por
não ficar ás escuras.
Que se
m'arde o candieiro.
Falula.
Diz
Nabucodonosor
No
sideraque e miseraque
Aquelle que dá gran traque
Atravesse-o
no salvanor.
E diz
mais, quem muito pede,
Mana
minha, muito fede.
Sete
mil custou a pipa;
Se
quereis fartar a tripa,
Pagae,
que a vinte se mede.
Maria Parda.
Raivou
tanto sideraque
E
tanta zarzagania.
Vou-me
a morrer de sequia
Em
cima d'hum almadraque.
E ante
de meu finamento,
Ordeno
meu testamento
Desta
maneira seguinte,
Na
triste era de vinte
E dous
desde o nacimento.
Testamento.
A
minha alma encommendo
A Noé
e a outrem não,
E meu
corpo enterrarão
Onde
estão sempre bebendo.
Leixo
por minha herdeira
E
tambem testamenteira,
Lianor
Mendes d'Arruda,
Que
vendeo como sesuda,
Por
beber, at'á peneira.
[...]
Assi
que por me salvar
Fiz
este meu testamento,
Com
mais siso e entendimento
Que
nunca me sei estar.
Chorae
todos meu perigo,
Não
levo o vinho que digo,
Qu'eu
chamava das estrellas,
Agora
m'irei par'ellas
Com grande sêde comigo.
FIM