LITERATURA
- PROFESSOR ADONAY
“NO
MOINHO” – EÇA DE QUEIRÓS
D. Maria da Piedade
era considerada em toda a vila como "uma senhora modelo". O velho
Nunes, diretor do correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com
autoridade os quatro pêlos da calva:
Mas se o marido de
dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os
olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra
consoladora, compondo a almofada a um, indo animar a outro, feliz em ser boa.
Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado.
Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a
interessava na terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes.
Todo o esforço lhe era fácil quando era para os contentar: apesar de fraca,
passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com
as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as
insônias do marido não dormia também, sentada ao pé da cama, conversando,
lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã
estava um pouco mais pálida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca, com
os bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos
pequerruchos. A sua única distração era à tarde sentar-se à janela com a sua
costura, e a pequenada em roda aninhada no chão, brincando tristemente.
Tais ocupações
bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o
aspecto de caras saudáveis, as comiserações de cerimônia; e passavam-se meses
sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à família, a
não ser a do dr. Abílio - que a adorava, e que dizia dela com os olhos
esgazeados:
— É uma fada! É uma
fada!...
D. Maria da Piedade
ficou aterrada com esta visita. E a brusca invasão daquele mundano, com as suas
malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu
hospital, dava-lhe a impressão apavorada duma profanação. Foi por isso um
alívio, quase um reconhecimento, quando Adrião chegou e muito simplesmente se
instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade da vila. João
Coutinho escandalizou-se: tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis
de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cômoda, e queria-o todo para
si, o primo, o homem célebre, o grande autor... Adrião porém recusou:
— Eu tenho os meus
hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos, hem?... o que faço é vir cá
jantar. De resto, não estou mal no tio André... Vejo da janela um moinho e uma
represa que são um quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?
Maria da Piedade
olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam
mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente
simples, - muito menos complicado, menos espetaculoso que o filho do recebedor!
Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas,
com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a
única terra que não estava devorada, ou abominàvelmente hipotecada, era a
Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava além disso mal arrendada... o
que ele desejava era vendê-la. Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como
fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil
sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da
vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe
que a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões
como um antigo rábula!...
— Ela vai contigo ver
a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço,
deixa-a a ela!...
— Mas que
superioridade, prima! - exclamou Adrião maravilhado. - Um anjo que entende de
cifras!
Pela primeira vez na
sua existência Maria da Piedade corou com a palavra dum homem. De resto
prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...
No outro dia foram
ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro,
partiram a pé. Ao princípio, Acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre
senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele
ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da
sua voz, nos seus olhos, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de
forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido
um galho de silvado, e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o
contato daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a
singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o
negócio com o Teles e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento
próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se,
branca e longa, sob o sol tépido - e a conversa de Adrião foi-a lentamente
acostumando à sua presença.
Ele parecia desolado
daquela tristeza da casa. Ela também assim o julgava: mas quê! o pobre João,
sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo à quinta, afligia-se
terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a
natureza forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado
entre os cortinados da cama...
Ele então lamentou-a.
decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão santamente cumprido...
Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além
daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença...
— Que hei-de eu
desejar mais? - disse ela.
Adrião calou-se:
pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da
Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração
insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela
criatura virginal e séria - que falou da paisagem...
— Já viu o moinho? -
perguntou-lhe ela.
— Tenho vontade de o
ver, se mo quiser ir mostrar, prima.
— Hoje é tarde.
Combinaram logo ir
visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila.
Na fazenda, a longa
conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da
Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã punha entre
eles como que um interesse comum.
Achava absurdo e
infame fazer a corte à prima... Mas involuntàriamente pensava no delicioso
prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho,
e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz... E o
que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal,
sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma
adormecida... Era uma ocasião que não voltava.
— Ficar aqui? Para
quê? - perguntou ela, sorrindo.
— Para quê? para
isto, para estar sempre ao pé de si...
Ela cobriu-se de um
rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e
acrescentou logo rindo:
— Pois não era
delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de
me dar a sua freguesia...
Isto fê-la rir; era
mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo.
Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela
estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha.
— E eu venho
ajudá-lo, primo! - disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria
daquele homem a seu lado.
— Vem? - exclamou
ele. - Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso, nós aqui ambos no moinho,
ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo cantar esses melros!
Ela corou outra vez
do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho.
Mas Adrião agora, inflamado àquela idéia, pintava-lhe na sua palavra colorida
toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de
verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na relva à beira
da água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou
sob a sombra cálida dos céus negros de verão...
E de repente, sem que
ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, dum só beijo
profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como
morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim tão dolorosa
e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou
diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:
— É malfeito... É
malfeito...
Ele mesmo estava tão
perturbado - que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam
ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou:
— Fui um tolo!
Mas no fundo estava
contente da sua generosidade. À noite foi à casa dela: encontrou-a com o
pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malva as feridas que ele tinha na
perna. E então, pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De
resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali,
naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A
venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de
tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na diligência: encontrou-a na sala,
à janela costumada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias...
Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião
achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da
Piedade ficou voltada para a janela escondendo a face dos pequenos, olhando
abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro,
caindo-lhe na costura...
Amava-o. Desde os
primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a
virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a
encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as
mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco
compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são,
aquela robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica; e antevia, para além
da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se
não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se
não passam a esperar as horas dos remédios.
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Depois ele deu-lhe
aquele beijo no moinho.
E partira!
Então começou para
Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela -
a doença do marido, achaques dos filhos, tristezas do seu dia, a sua costura -
lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma,
eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como
desgraça excepcional: não se revoltava ainda: mas tinha desses abatimentos,
dessas súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sobre a cadeira, com os
braços pendentes, murmurando:
— Quando se acabará
isto?
Refugiava-se então
naquele amor como uma compensação deliciosa.
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Leu todos os seus
livros, sobretudo aquela Madalena que também amara, e morrera dum
abandono. Essas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao
desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às
suas.
Lentamente, essa
necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes,
apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se
assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A realidade
tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde
encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras
revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos
episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a voltar o marido e
sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das
feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num
mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma
apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos
rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...
O seu amor
desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um
ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um
ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a força. Porque era
isto que admirava, que queria, por que ansiava nas noites cálidas em que não
podia dormir - dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal,
dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.
Às vezes, ao pé do
leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de
entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...
E no meio desta
excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de
ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se
havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o
cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo
intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.
E o romanticismo
mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que
chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair
nos braços: - e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a
dois anos. Era o praticante da botica.
Por causa dele
escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos
e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer
abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras,
tudo num desamparo torpe - para andar atrás do homem, um maganão odioso e
sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada
atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas
de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para
sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.
Observações:
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